Casal infeliz

Nada ia bem naquela casa, e a vida a dois era insuportável.
Não havia reuniões com os amigos, porque todos se afastaram. Diziam que ela era maluca, e ele insuportável.
Não havia companhia do filho. De tanto se sentir ignorado e mal amado pelos pais, procurou nas aventuras da vida, nas drogas e prostituição, alegria e sentido para o que faltava. Não adiantou. Furtava, ameaçava, comprava, ficava legal, se acabava, e quando voltava a si, tudo recomeçava.
Também não havia sentido no trabalho. Acordar e cumprir horário já não era motivo suficiente para se levantar da cama.
Quando passavam, a vizinhança toda se recuava, afinal, não era nada agradável conversar com aquelas pessoas.
 O jeito era se mudar, procurar novos ares, quem sabe novas pessoas, na tentativa de achar significado.
Foram para um prédio. Grama por todo lado, acesso fácil, vizinhança tranquila, apartamento aconchegante.
Era um sábado 13 e começava a anoitecer. No apartamento de cima crianças brincavam e riam. Aquela agitação deveria trazer vida, alegria aos ouvidos, mas pelo contrário.
De lá do fundo da alma, onde ficam guardados os sentimentos, minavam raiva, ódio e desespero. Uma lembrança dolorida dos pais que poderiam ter sido, mas não foram, dos amigos que poderiam ter cultivado, mas não conservaram, dos vizinhos com quem poderiam conviver, mas preferiram se afastar.
E se afastaram mais uma vez.
O interfone toca.
- Alô?
- Sou a vizinha aqui de baixo. Pela boa convivência entre nós, queria pedir para parar com o barulho aí em cima. Está ensurdecedor aqui.
- Mas são só crianças brincando.
- Não. É esse Velotrol pela casa, móveis sendo arrastados, som alto... Não quero me indispor, por isso, acho que a gente poderia entrar num consenso.
- Ok, vou falar para as crianças falarem mais baixo. Mas não tenho Velotrol, e a única coisa que estamos arrastando aqui é a porta do guarda-roupa, que é de correr e faz um barulhão.
Tudo parecia resolvido, #SQN.
O barulho persistia. As crianças continuavam correndo e rindo, como se quisessem atenção. Até que soava familiar, mas já não se lembrava por quê. O Velotrol continuava indo e vindo – onde mesma tinha ouvido aquele barulho uma vez? –, e os móveis se arrastavam infinitamente.
Anoiteceu no domingo, e todo aquele barulho estava insuportável.
O interfone tocou.
- Alô?
- Dá para mandar essas pestes calarem a boca? Eu não aguento mais! Está insuportável esse barulho, vocês não respeitam o horário...
- Ei, mas quem está falando?
- ... de silêncio, é esse Velotrol o dia inteiro pela casa, vocês jogam as coisas no chão para provocar, arrastam móveis para todo lado...
- Mas ninguém está fazendo nada...
- ... e minha vida ficou um inferno! Se vocês não sabem viver em sociedade, por que não se mudam para a roça, num lugar isolado, que não incomode ninguém? Se não sabem...
- Olha aqui, você está falando com uma mulher grávida!
- QUE SE DANE QUE VOCÊ ESTÁ GRÁVIDA! Feche a perna e segure seu marido. Você precisa aprender a se colocar no lugar dos outros e perceber que está incomodando seu vizinho, que trabalha o dia inteiro e quer um pouco de descanso a noite. Alô? Alô, está ouvindo? Alô...
Do outro lado, o interfone já estava no chão, e ela não pode terminar tudo o que queria dizer.
Queria dizer que estava infeliz. Que nada ia bem naquela casa, e a vida a dois era insuportável. Que os risos e brincadeiras lembravam a infância do filho, uma lembrança distante, quase apagada pelos anos de drogas e violência, mas que insistia em voltar à tona toda vez que havia risos.
Queria dizer que tudo o que gostaria era estar ali, com a casa cheia, com a família próxima, se sentindo amada. Mas já não podia dizer mais nada. Do outro lado, só havia o sinal de linha ocupada.


"Pattern of happiness and sadness"
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