O ano acabara de começar, e ela tinha esperança de que tudo daria certo. Ainda que desempregada, havia uma reserva que poderia garantir algum tempo de sobrevivência, o suficiente até um novo trabalho.
Durante o mês de janeiro, buscou uma vaga nos mais diferentes lugares, mas foi em vão. Em fevereiro, buscou outros lugares. Março chegou, e como o país só funciona depois do Carnaval, pensou que finalmente conseguiria voltar ao mercado de trabalho.
Foi quando tudo ficou mais difícil.
As reservas já não aguentariam tanto tempo. O marido, também desempregado, vivia de bico havia anos. A decisão mais difícil foi transferir a filha de escola, depois que mudaram para uma casa menor. A nova escola tinha má fama por causa do assassinato do ano passado.
A filha decidiu não se queixar. Com seus olhos inocentes, ainda infantis, recebeu a mudança como algo temporário, e logo ela estaria numa escola melhor, novamente.
Passaram abril e maio, e as despesas de supermercado foram sendo cortadas. O inverno foi o mais duro de todos, pois os banhos tinham que ser curtos, e às vezes, somente a filha tinha esse privilégio.
Em agosto, recorreram pela segunda vez a um parente, mas o calote anterior fez com que ele negasse qualquer ajuda.
Em setembro apareceu uma entrevista de emprego.
-- Vamos entrar em contato com a senhora.
Outubro chegou, o contato não veio, mas o primeiro aviso de corte de energia, sim. A situação beirava o desespero. Não havia mais diálogo na casa, a não ser pela filha, que se orgulhava em demonstrar as palavras que começara a escrever.
O segundo aviso de corte chegou em novembro, e ela não hesitou: saiu às ruas pedindo dinheiro, ao invés de emprego. A roupa em trapos, o olhar cansado e humilhado e o suor de um corpo que pede pelo banho somente afastavam as pessoas.
Em dezembro, os olhos da filha brilhavam cada vez que se passava, naquela mente infantil, a possibilidade de um bom velhinho chegar de repente e mudar tudo.
De fato, quem chegou foi o terceiro e último aviso de corte. O marido, com o bico que fizera naquela semana, parou num bar e se embebedou, e não poderia ajudar novamente.
Ela decidiu, então, multiplicar o último dinheiro que tinha. Entrou numa loja, comprou panos de prato, sentou com a filha na porta de um supermercado e esperou.
Quando os clientes chegaram, ofereceu três panos de prato a 10 reais.
-- É pra ajudar a pagar a conta de luz, moço.
Enquanto ouvia muitos nãos e alguns solidários sims, não percebeu que sua filha tinha se afastado.
A menina reparou que as pessoas pegavam os carrinhos e entravam no supermercado, depois saiam de lá cheias de sacolas. Aquilo era a solução dos problemas. Imediatamente, pegou um carrinho que conseguia carregar - os outros eram muito pesados - e entrou. Pegou pão e presunto. Adorava comer presunto, e a mãe ficaria orgulhosa de sua escolha.
A menina passeava pelo supermercado fascinada pela quantidade de coisas que poderia escolher. Olhava as bebidas, todas diferentes e de cores alegres, os doces e chocolates, que eram muitos e a deixaram em dúvida sobre o qual escolher, e aí…
Não tinha dado conta de que o segurança do supermercado havia parado em sua frente e, sem ouvir explicação, a botou pra fora.
A mãe, desesperada, perguntou onde ela tinha andado esse tempo todo, e a menina ficou sem entender por que ela tinha sido expulsa dali.
No caminho de volta pra casa viu um carro passando. A música alta chamou sua atenção, e se deslumbrou ao ver, em cima do carro, bem ali, do seu ladinho, um velho de barba branca e roupas vermelhas acenando para ela.
Seus olhos infantis brilharam, e por um momento pensou que tudo estaria bem novamente, que seus pais iriam voltar a trabalhar e ela poderia voltar para aquela escola.
Recebeu um tranco no braço quando a mãe a puxou para andar mais rápido, porque estava começando a chover e elas não poderiam se dar ao luxo de ficar resfriadas.
Quando foi deitar, naquela noite, a menina percebeu que sua mãe chorava havia horas, desde a tarde, quando chegaram da cidade.
Então teve uma ideia.
Quando o sol começou a aparecer, a menina levantou, foi até a cozinha, pegou o saco de pão, escolheu um, colocou em cima dos prato. Encheu um copo com água e o colocou ao lado do pão.
Passou pelo pai, que estava deitado no chão, ao lado da mesa, e foi até o sofá, onde a mãe dormia.
-- Mãe, fiz o seu café de Natal.
A mãe, que acordou assustada, ficou feliz em ver o gesto da menina.
Abaixo daqueles olhos reluzentes, cheios de esperança e sonhos, havia um prato. Nele, repousava o copo de água e o pão, que estava velho e consumido pelo bolor.
Imagem: Pixabay
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